domingo, 13 de maio de 2012

A rodar: Stan Getz & João Gilberto - Getz / Gilberto - Analogue Productions 2xLP 45rpm


(a capa do disco Getz / Gilberto ilustrada com uma pintura de Olga Albizu)

(for this review in English please click here)

Foi este disco de 1964 que imortalizou temas famosos como "The Girl From Ipanema", "Desafinado" e "Corcovado", cimentando assim definitivamente a invasão da Bossa Nova ao Mundo do Jazz e popularizando o género para o público em geral. Gravado em Março de 1963 nos estúdios da A&R Recordings de New York e editado pela Verve no ano seguinte, foi um dos discos de Jazz mais vendidos de sempre, ganhando vários prémios entre os quais se detacou a primeira vez que um disco de Jazz ganhou o Grammy Award para melhor album do ano em 1965, algo que só voltaria a repetir-se 43 anos depois com o album River de Herbie Hancock. Ganhou também o Grammy Award para Best Engineered Album (non classical) o que revela bastante sobre o cuidado com que foi gravado e produzido, apesar da história caricata que vou contar mais à frente sobre a forma como foi masterizado para vinil pela primeira vez.




Musicalmente, não precisa de grandes apresentações, estas melodias fazem parte do nosso imaginário colectivo global desde há décadas, trata-se de um verdadeiro Clássico que contou com grandes nomes do Jazz e da "cena" Bossa Nova do Brasil, com maior relevo para as participações de Stan "The Sound" Getz no sax tenor, João Gilberto (um dos criadores e principais vozes da Bossa Nova) na viola / voz, e António Carlos Jobim (que compôs a maior parte dos temas do disco, à época já consagrado no seu país, também um dos criadores do género) no piano.  Além destes grandes nomes, apresentou também Milton Banana na bateria (o seu contributo foi enorme para o sucesso deste disco), Sebastião Neto no contrabaixo e, de forma algo inesperada a voz de Astrud Gilberto que se encontrava no estúdio a acompanhar o marido João, e que por insistência deste, de forma completamente imprevista, acabaria por cantar em alguns dos temas mais famosos do disco, celebrizando a sua voz e abrindo portas à sua carreira internacional.




Falando na Astrud Gilberto, a belíssima esposa de João Gilberto, há algumas histórias interessantes à volta da sua participação nesta sessão de gravação, e sobre o seu envolvimento amoroso com Stan Getz que veio a público pouco mais de um ano depois, o que pode ou não explicar alguma animosidade que havia em estúdio durante a gravação desta música "cool" que transparece tanta calma e harmonia... Na verdade houve vários relatos de atritos entre João e Stan durante as gravações em que Getz era apelidado de "gringo" por João Gilberto que obrigava Jobim a intermediar e traduzir as conversas entre os dois, algo que ele fazia sempre acrescentando alguma elegância e civismo ao que era dito originalmente pelos outros dois, para tentar acalmar o ambiente...  João Gilberto viria também a acusar Stan Getz de tocar o sax com demasiado volume e de durante a mistura do album ter pedido para que o saxofone fosse ainda mais destacado no "mix", como forma de se auto-promover, contrastando com a sonoridade geral do album, que se pretendia mais relaxado. São muitas as fotos em que se pode ver Stan Getz sorridente e João Gilberto de semblante carregado e até um pouco incomodado. Teria razões para isso... felizmente em nada prejudicou a Música!



(o video mostra o lado C desta reedição a tocar no meu sistema audio com o Rega P9)


A sessão de gravação foi meticulosamente realizada nos Estúdios A&R Recordings de New York por Phil Ramone sob a Produção de Creed Taylor, acabou por ter também uma história curiosa acerca de um "descuido" que veio a afectar a forma como este album se deu a conhecer ao Mundo e como foi sendo reproduzido ao longo de décadas. Como era típico na época, a gravação foi feita simultâneamente para tape mono (misturado em tempo real no momento da gravação) e para tape de 3 faixas (na verdade são como 3 faixas mono na mesma tape, correspondentes ao canal esquerdo, central e direito) que depois tem de ser misturada para verdadeiro Stereo (mix-down para dois canais).

A mistura original da tape 3-Track para 2-Track Stereo feita por Phil Ramone (e é este down-mix para stereo que se considera tecnicamente a "Master Tape" original), representa fielmente o posicionamento dos artistas e microfones no estúdio de gravação, com a voz de Astrud e o piano de Jobim no lado esquerdo do palco sonoro, o saxofone de Getz e a voz/viola de João Gilberto ao centro, e finalmente a bateria e o contrabaixo do lado direito, com a particularidade da voz de Astrud Gilberto estar sempre do lado esquerdo e ser praticamente inaudível no canal direito, ou seja a voz vem como que afastada, de fora do palco sonoro a partir do lado esquerdo, e não de dentro da imagem stereo (porque no canal direito a sua voz não aparece). Como muitos leitores poderão recordar-se, ou poderão ir verificar agora, muito provavelmente não é isto que vão ouvir quando puserem o vosso disco (CD ou LP) a tocar. Algo aconteceu...




Esta Master Tape (down-mix stereo feito a partir da 3-track) é depois copiada para uma "Safety Tape" e usada para fazer a primeira masterização (ou corte) para vinil, que na altura poderá ter sido feita por Ami Hadani (mas não é possível confirmar). Neste momento, por um motivo que é completamente desconhecido, houve uma inversão dos canais que simplesmente trocou a posição dos intrumentos do lado esquerdo com os instrumentos do lado direito, com o efeito mais óbvio, entre outros, de ter colocado a deslumbrante voz de Astrud Gilberto a surgir do lado direito do palco sonoro, e é assim que a maior parte das pessoas se lembra desta música, quando na verdade não foi assim que a gravação ocorreu nem foi assim que a mistura original fez a disposição dos vários elementos sonoros.

Durante a primeira masterização para vinil, e em simultâneo, foram feitas novas cópias da Master Tape a que se chama de "EQ Cutting Master", onde ficou registada essa inversão de canais e a informação sobre as opções técnicas (ajustes, etc) realizadas nessa sessão de masterização para que seja possível replicar esse mesmo corte noutros locais do país e do Mundo sem que haja alterações relevantes de mistura, equalização, etc... ou seja, estas foram as cópias EQ Cutting Master que foram distribuídas e que serviram de base para, provavelmente, todas as edições em LP e CD feitas até 1997, altura em que algumas reedições foram feitas com recurso à "3-Track Tape" original (basicamente são remisturas, não representam o mix original deste album). Ficou desta forma feita a difusão mundial de um "descuido", que alguns classificam de erro, embora até hoje não seja claro se houve ou não alguma intenção para o fazer, o que seria bastante incomum até porque não consta das notas de masterização originais. Quando o album se tornou um sucesso de vendas descomunal, isso aconteceu a partir de uma mistura invertida... provavelmente causada por um par de cabos trocados na consola de masterização do primeiro vinil de Getz/Gilberto.


(foto original de David Drew Zingg que ilustra o interior da capa "gatefold" original)


O que esta reedição traz de novo, além de nos oferecer o album pela primeira vez em dois discos de 12" a 45rpm, é o facto de representar também a primeira vez que o disco nos é apresentado com a disposição de elementos da mistura original de Phil Ramone, produzida a partir dessa Master Tape original de 1963 de forma 100% analógica por George Marino nos estúdios da Sterling Sound. Nunca anteriormente tinha chegado ao mercado o famoso album Getz/Gilberto com uma produção tão cuidada e tão fiél ao original, não ao LP original que como vimos foi ele próprio resultado de um erro operacional que lhe inverteu os canais, mas à gravação original, ao que se passou no estúdio, e à mistura original do responsável por essa gravação, usando-se agora também pela primeira vez essa Master Tape que não era utilizada desde 1963, em vez de uma das muitas EQ Cutting Master ou da 3-Track tape. Tirando a possibilidade de voltar a juntar o Stan Getz com Jobim e o casal Gilberto para tocar este clássico intemporal nas nossas casas mesmo à nossa frente, nada mais do que essa Master Tape de 1963 nos aproxima desse ideal musical e sonoro! Aconteceu agora com esta reedição da Analogue Productions.




Depois de muita pesquisa para encontrar a verdadeira Master Tape original (o Stereo mix-down feito em 1963 por Phil Ramone a partir da 3-track tape usada para gravar a sessão), por entre erros de catalogação (A-File / B-File) e problemas de logística e arquivo, foi preciso decidir sobre a viabilidade da sua utilização já que, passados mais de 50 anos e eventuais maus tratos em vários arquivos, o estado da tape poderia não ser melhor... Depois de uma cuidada inspecção e audição da tape, George Marino e a sua equipa  consideraram que era possível manter os níveis de ruído e distorção típicos de uma tape com alguma deterioração num mínimo perfeitamente aceitável face aos benefícios sónicos de fazer esta remasterização a partir de uma tape de primeira geração em vez de uma cópia de segunda geração. E tinha toda a razão, apesar de algumas passagens em que é possível ouvir os sinais da idade da tape, na verdade pouco ou nada incomodam e a transparência obtida na transposição dos instrumentos e vozes presentes na tape para o "vinyl lacquer" é notável, com a presença do saxofone de Stan Getz e da voz de João Gilberto a tornar-se extremamente realista, vívida, detalhada e por vezes arrepiante! Algo que não encontraremos provavelmente em mais nenhuma edição deste album, seja em vinil, CD, SACD ou ficheiros de alta resolução (como os que estão disponíveis na HD Tracks e que também apresentam o mix invertido como tantas outras versões ao longo destas décadas).

Nos estúdios da Sterling Sound, George Marino teve a possibilidade de trabalhar com um leitor/gravador Ampex ATR-102, um equipamento de eleição para fazer mistura ou gravação mas que não era usado para masterizar vinil porque a Ampex nunca fez uma versão com "Preview Head" indispensável para essa função. No caso desta ATR-102 foi feita uma alteração única que adicionou uma "Preview Head" (trabalho realizado por Mike Spitz da ATR Services e Barry Wolifson da Sterling), tornando a máquina da Sterling a única do Mundo a beneficiar desta alteração que lhe permite ser usada para masterizar discos de vinil com a qualidade que lhe é reconhecida.




E como soa esta reedição? Bom, para começar é sempre um prazer enorme ouvir este disco mesmo depois de tantos anos e tantas audições, a música é maravilhosa e não nos consegue cansar, antes pelo contrário, cada audição é uma viagem e uma redescoberta. Nunca o foi tanto como nesta reedição onde além do realismo e palpabilidade do sax e vozes já referido podemos ouvir provavelmente a versão mais limpa em termos de equalização (onde por exemplo a edição da MFSL falha pelo exagero) com os graves do contrabaixo bastante contidos ao contrário de muitas outras edições onde estes estão muito "espalhados" e sem definição. O equilíbrio tonal e tímbrico do mix original e deste esforço de masterização é bastante harmonioso conseguindo uma fusão mais eficaz entre os instrumentos e a voz de Astrud Gilberto, com uma apresentação do palco sonoro mais clara e sem defeitos de "panning" na mistura (há versões onde por exemplo se ouve a voz de João Gilberto num local do palco e a sua viola noutro local completamente diferente). 

Além de um ou outro sinal de distorção ocasional presente na Master Tape, as altas frequências são outro dos elementos a sofrer com a idade e manuseamento menos cuidado da tape. O que pode dizer-se sobre elas é que soam com presença suficiente e timbre bem preservado de forma bastante natural. Seguramente uma edição original de 1964 feita com uma tape "fresca" terá mais energia nessa gama de frequências, mas não há qualquer motivo para achar que isso prejudica de alguma forma a qualidade sonora audiófila desta reedição cuja masterização e prensagem é de qualidade superior em todos os aspectos. Felizmente para nós George Marino resistiu, ao contrário de outros Mastering Engineers, a tentar compensar isso através de uma equalização exagerada e pouco realista que seria desnecessária e seguramente afectaria o som de todos os intrumentos deitando por terra o esforço de rigor técnico e bom gosto que foi aplicado na produção deste disco. Esta reedição da Analogue Productions é na minha opinião e com pouca margem para dúvidas a melhor edição alguma vez produzida deste clássico do Jazz Bossa Nova, trata-se de um disco absolutamente indispensável.

A prensagem desta edição em duplo vinil de 200 gramas a 45rpm foi feita na nova Quality Record Pressings (da Acoustic Sounds) e em geral corresponde bem à expectativas e ao preço desta edição (cerca de $49 USD), apesar de ter detectado na minha cópia algum ruído de fundo (uns tick/pops muito ligeiros) principalmente na primeira faixa do lado A, mas nada de preocupante, com os discos a pousarem de forma quase perfeitamente plana no prato, e um packaging de altíssima qualidade, capa gatefold de cartão bastante grosso e rígido, acabamento laminado de efeito brilhante e bolsas interiores dos discos em material "polyethylene" que protegem os discos sem deixar quaisquer marcas e sem causar carga estática nos mesmos. De acordo com a Analogue Productions trata-se de uma edição limitada em que apenas as primeiras 2500 unidades foram numeradas, neste momento ainda está em produção a versão não numerada, não sei por quanto tempo... Uma reedição a não perder e uma escolha óbvia para inaugurar o Vinyl Gourmet TOP 100 Audiófilo!


Stan Getz and Joao Gilberto
Getz / Gilberto (Verve 1963)
Analogue Productions Ltd Edition (AP-8545 / USA 2011)
Mastered from Original Master Tapes by George Marino at Sterling Sound
Matrix Side A: (AVRJ).MG-V6-8545-A Sterling
Matrix Side B: (AVRJ).MG-V6-8545-B Sterling
2xLP 200gr @45rpm pressed at Quality Records



Resumo da Classificação ViciAudio (Música 10/10 - Som 9/10 - Produto 9/10):
Preço alto mas que compensa pelo pioneirismo da edição que é limitada mas não se sabe por quantas unidades, packaging de excelente qualidade mas sem extras, gravação fenomenal, Master Tape com algumas limitações pouco relevantes face a vantagens óbvias, masterização fabulosa e prensagem de boa qualidade, música que faz dos sonhos... sonhos, definiu uma geração de músicos e ouvintes.

Para ver e ouvir em http://www.ViciAudio.pt


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sexta-feira, 11 de maio de 2012

Bernardo Sassetti - A Vertigem do Silêncio (1970 - 2012)



Ontem 10 de Maio 2012, o músico Bernardo Sassetti caiu de uma falésia na zona de Cascais quando tirava uma fotografia (outra das actvidades a que se dedicava), e acabou por falecer... aos 41 anos, deixando a sua esposa Beatriz Batarda e duas filhas.

Deixa também muita música... Música genial, de um dos melhores que Portugal foi capaz de mostrar ao Mundo. Dizia ele que o cineasta José Álvaro Morais a certa altura o despertou para a importância do Silêncio. Era nesse Silêncio que Bernardo Sassetti dizia mergulhar-se constantemente, olhando o Infinito, e buscava nele a inspiração e a música que fez dele um artista e uma personalidade tão singular. Foi o meu Silêncio que os discos e concertos do Bernardo Sassetti tantas vezes preencheram e vão continuar a preencher, enriquecendo-me e tornando o meu Mundo melhor.

O Piano agora parece que toca sozinho, mas é apenas uma ilusão, uma Vertigem de Silêncio. Até sempre Bernardo, obrigado por tudo o que nos deste!


 


"Temos que saber dar tempo ao seu "tempo". Ouvir-lhe a voz. Ouvir-lhe o silêncio." ~Bernardo Sassetti

Para ver e ouvir em http://ViciAudio.blogspot.com


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